Texto de Paula Monteiro
In Revista «Villas & Golfe», Junho/Julho de 2008
Desde o círculo vermelho que pintou, aos 4 anos, na parede branca da casa dos pais, Nadir Afonso pressentiu, e agora sente e sabe, que é na geometria, nas leis matemáticas, que está a essência da obra de arte. Quando um artista pinta, diz o Mestre, ele «representa essas leis matemáticas que estão na natureza, embora não tenha disso consciência».
Do seu percurso - tanto apreciável nas obras de arte realizadas como analisável nos diversos livros anele expõe asuateoria sobre a criação artística - fazem parte diversas experimentações, pois a arte é uma «procura que se faz experimentando». Arquitecto por acaso, inevitável e intrinsecamente pintor, Nadir Afonso continua na demanda da harmonia, essa lei que rege a arte, habitante das insubstituíveis e indestrutíveis leis matemáticas da geometria. Como estas leis são naturais c cosmológicas, através da geometria alcança-se o íntimo da natureza, revelando a arte, segundo o Mestre, «a relação entre a lei e o objecto».
Aos 4 anos pintou um círculo na parede da sala dos seus pais. O que acha que o levou a pintar essa forma geométrica, geometria que marcou a SUA obra pictórica posterior?
Tinha 4 anos, tratou-se de algo irreflectido. Se há alguma relação com o meu trabalho posterior, não sei explicar. Achei que era uma figura bonita e interessante - no branco da parede, o círculo vermelho sobressaía. Mas não fui mais além do que isso. A reflexão aparece agora. E talvez possa chegar a uma conclusão - devia haver, no subconsciente, uma atracção, que eu já sentia nessa altura, pelas figuras geométricas.
Afirmou que «um quadro versa certas leis, leis de composição, que são leis que estão na matemática e essas leis são imutáveis». A que leis se refere?
São as leis da matemática. As leis da matemática são imutáveis: 2 + 2 = 4 em qualquer parte. Ainda que nunca tivesse existido um círculo ou um quadrado, a lei em si existe, é pré-existente. O Homem foi atraído por essa geometria, uma geometria latente. As leis do círculo, do quadrado, do tetraedro, todas elas são insubstituíveis c existem mesmo se o objecto nunca tivesse existido.
E um pintor, ao pintar, procura representar essas leis?
Procura, ainda que não tenha disso consciência. E normalmente não tem. O artista diz: «Não tenho nada a ver com a geometria. Eu exprimo na minha obra o meu mundo interior». Isto é falso. O artista pensa que é o seu mundo interior que ele exprime na sua obra, quando o que ele faz é ir buscar leis que estão na natureza. Ele exprime essas leis porque as sente sem as compreender.
Pode-se então dizer que Arte é uma equação que precisa ser desenvolvida mentalmente e cuja solução não está, necessariamente, no mundo visível?
Não é visível. A geometria não é um fenómeno dizível. Não posso definir as leis da obra de arte, nem as leis do cosmos, mas posso senti-las. Insisto nisto porque é muito importante: o artista emprega essas leis porque as sente, mas não as compreende.
E por isso vemos os artistas a não estarem de acordo comigo, e muito menos os estetas. Porque as coisas não são reflectidas, não atingem o nível da consciência. Passam-se ao nível da intuição e não da consciência.
A sua experiência com o círculo vermelho na sala e posterior evolução pareciam ditar que estaria nas Belas-Artes a sua formação. Qual foi o acaso que ditou a inscrição em arquitectura?
Fui para arquitectura porque fui solicitado por agentes exteriores. Quando cheguei às Belas-Artes do Porto, levava um requerimento para me inscrever em Pintura. Mas quando lá entrei, encontrei um funcionário que estava lá dormitando. Disse-lhe que queria inscrever-me em pintura. Ele puxa pelo requerimento e diz: «Oh homem, então o senhor tem o curso dos liceus e vai-se inscrever em pintura?! O senhor vai para arquitectura!». Naquele tempo, há 60 e tal anos, não cabia na cabeça de ninguém que quem possuísse o curso dos liceus fosse para pintura, pois bastava ter a instrução primária para seguir pintura.
Eu, cobardemente, com os meus 18 anos, rasguei o meu requerimento para pintura e fiz outro para arquitectura. E lá fui eu para arquitectura, empurrado por essa opinião de um funcionário. Mas fiz mal, porque eu só fui pintor. Nunca fui arquitecto. Fiz o curso, mas nunca me senti arquitecto.
Continua a defender que a arquitectura não é uma arte, como o fez na sua tese de licenciatura?
Sempre tentei compreender as leis que regem a arte e as leis que regem a arquitectura. As leis que regem a arte são as leis da harmonia, as leis matemáticas da geometria. A arquitectura não precisa de responder a essas leis, é uma disciplina que procura a funcionalidade. Um bom arquitecto não anda atrás das leis da harmonia, mas sim das leis da perfeição, que são leis da natureza, como as da harmonia, mas que têm uma fonte diferente.
Mas então qual é a distinção que o Mestre estabelece entre harmonia e perfeição?
As qualidades estão ambas na natureza - o espírito do Homem não faz mais do que apreender essas qualidades. A harmonia é de fonte matemática, não obedece a uma lei de funcionalidade. Se o objecto, pela sua função, responde às leis da perfeição, não está relacionado com as leis da harmonia. A perfeição, a qualidade do objecto cuja função responde à necessidade do sujeito. O artista procura e a lei de harmonia. Quando um pintor pinta anda atrás das leis da harmonia.
Apesar da ida para arquitectura ter sido fruto de uma selecção aleatória e de não se sentir feliz com a SUA escolha, teve qualidade suficiente para trabalhar com Le Corbusier e com Óscar Niemeyer. Como se deram estes felizes acasos?
Foi uma coincidência puramente social. Fui para Paris um pouco atraído pela harmonia das formas, pela arte. Mas depois tive a necessidade de trabalhar, tive de fazer arquitectura Já tinha o diploma de arquitecto, precisava de trabalhar, de ganhar dinheiro e fiz arquitectura durante muitos anos E resolvi bater à porta de Le Corbusier porque achei que seria mais interessante, porque ele também era pintor. Foi esse um dos factores que me 1evou a escolher Le Corbusier. Em relação ao Óscar Niemeyer, também trabalhei lá por acaso e o facto de ter trabalhado com o Le Corbusier ajudou a que eu trabalhasse no atelier do Niemeyer. Mas estas são questões de carácter social, de necessidade de subsistência, que nada têm a ver com a minha ambição de pintar.
O percurso da SUA estética, iniciado com o fascínio do geométrico com o círculo vermelho, passou pelo expressionismo, pelo surrealismo, pela figuração humana, sobretudo feminina, pela arte cinética, tendo quase que regressado ao princípio, com o abstraccionismo geométrico. O que ditou este percurso?
Isso passa-se um pouco no subconsciente. Uma pessoa é influenciada. A determinada altura fui atraído pela pintura de Max Ernst. Às vezes era levado a procurar isto ou aquilo. Por exemplo, quando vi a pintura de Victor Vasarely, pensei «para aqui é que vai a arte». Passei também a procurar a geometria pura. Há coisas que nós, pouco a pouco, vamos apreendendo No início da minha carreira de pintor, não pensava, como pensei mais tarde ou como penso hoje, que a essência da obra de arte está na matemática. Inicialmente pensava que na obra de arte há preferência do artista pela perfeição dos objectos Só muito mais tarde cheguei à conclusão que a perfeição não tinha nada a ver com a arte - posso fazer imperfeição e fazer arte. Foi um trabalho lento, duro, de longos anos, que me levou à conclusão que a essência da obra de arte está na matemática A arte no fundo é isso - um indivíduo anda a tactear, procura as coisas experimentando.
Para lá da SUA obra pictórica, tem escrito diversos livros nos quais explica as características da criação artística. O que determina esta criação? Porque consegue o artista captar essas formas puras, nem que seja inconscientemente?
É o trabalho de longos anos que faz com que o artista comece a sentir essas leis. Trabalhando as formas, o Homem é trabalhado por elas. Trabalhando, o artista vai sentindo, pouco a pouco, a harmonia que existe nas formas e depois emprega essa harmonia na sua obra. E há uma coisa curiosa. Hoje tenho 87 anos. Estou muito mais decrépito agora do que estava há 50 anos, há 30 e mesmo há 10 anos. Já não sou o mesmo homem. Tenho dificuldade em compreender certas coisas. Mas a minha sensibilidade está mais desperta à harmonia das formas do que anteriormente. A sensibilidade aumentou.
Às vezes pego num quadro meu que já não via, por exemplo, há 50 anos, olho para ele e sinto que o quadro está errado num determinado local. Mas está errado ou não está errado?
Sinto que ao quadro falta, por exemplo, um quadrado. Mas está ou não está lá o quadrado? Não tenho a certeza.
Se fizermos uma conta do tipo 2 + 2 = 4, não precisa de lá estar o 4. Esta igualdade, por si, i.e., o 2 + 2, já me dá o 4. No quadro é a mesma coisa. Um quadrado ali, mais um triângulo acolá – o equilíbrio do quadro em si, com aquelas formas reais, dá-me a certeza que num ponto x falta qualquer coisa, que não sei se está ou não está, mas que é a súmula de tudo o que lá está -, eu sinto a lei. Se tenho em mim a faculdade de apreender a lei através das formas concretas, posso ver uma forma concreta sentindo lei. Há um fenómeno na natureza que a filosofia desconhece: a lei pode-nos mostrar o objecto sem que o objecto lá esteja. Aquilo que existe na natureza foi gerado por leis ao ponto da lei, por si, gerar objectos. Na natureza temos formas, mas antes de haver estas coisas concretas, havia as leis que as formaram. Como é que nasceu o cosmos? Porque havia leis. Não houve um início. Dizemos que deve ter havido um Deus, Nosso Senhor, a formar as coisas. Não, havia as leis.
Pode-se então dizer que as leis são Deus?
Prefiro dizer que é a natureza. Nós pensamos que os objectos foram criados, mas foi a própria lei que os gerou.
E poder-se-á dizer que é através da geometria que se alcança o íntimo da natureza?
Acho que sim, através da geometria alcança-se o íntimo da natureza. E a arte revela essa identidade, essa relação entre a lei e o objecto.