Entrevista de Agostinho Leite publicada no «Jornal de Negócios»
Hoje vê melhor certas formas do que via antes. Hoje sente mais precisamente a matemática destas formas. Evoluiu “na acuidades da contemplação das formas”, diz. “Alguma coisa melhorou, outras, coisas se foram perdendo”, concede. “Nada está definido no tempo”.
A conversa começou na sala evoluiu para o atelier e acabou na biblioteca, no sótão. É lá que aos quase 87 anos Nadir Afonso olha para a eternidade com a convicção de que Einstein está errado. Vinha o encontro a propósito da exposição na Galeria António Prates em Lisboa. Pouco fica aqui desse pretexto. A viagem começou na sala de estar em Chaves, daí seguiu para o Porto, passou pelo atelier de Le Corbusier; e pela Galerie Denise René, em Paris, de onde saltou para o Rio de Janeiro, com Niemeyer. Evoluiu da roda vermelha para o círculo, para o Graal, e daí voltou a partir em direcção às estrelas.
O seu trabalho é de uma constância assinalável, sobretudo nas últimas duas décadas. Faz sentido perguntar o que nos propõe hoje Nadir Afonso, em que fase está o seu pensamento e a sua pintura?
Normalmente nunca trabalho um quadro úniconun1 determinado espaço de tempo. Geralmente, revenho sempre sobre coisas passadas, há uma certa intersecção de coisas actuais com coisas antigas, de maneira que, para responder sinceramente à pergunta, devo dizer que não tenho assim un1a evolução muito bem definida. As coisas interrompem-se, as coisas recomeçam, as coisas retrocedem, sempre num ritmo que eu próprio não controlo. Por vezes pego num quadro com cinquenta anos e retoco-o, outras vezes estou muito tempo sem olhar para um quadro e depois vejo certos defeitos. Porque, a meu ver, um quadro versa certas leis, leis de composição que são leis que estão na matemática e essas leis são imutáveis. Portanto, o que vejo hoje posso não ter visto anteriormente, mas não é pelo facto da lei ter mudado. A nossa percepção, a nossa capacidade, a nossa acuidade é que vai evoluindo. Hoje vejo melhor certas formas do que via anteriormente. Se bem que já não tenha aquela capacidade de trabalho que tinha há cinquenta anos, certas formas, hoje, sinto mais precisamente a sua matemática. Evoluí na acuidade da contemplação das formas, alguma coisa melhorou, outras coisas se foram perdendo. Daí que, para responder à pergunta, devo dizer que nada está definido no tempo. E isto, acho que é uma resposta que coincide com a minha maneira de sentir. Geralmente, os artistas vão evoluindo e sempre, à medida que vão evoluindo, vão dando novas coisas, novos temas, e isso é que dá sequência à sua obra. A meu ver, o tema é secundário. Posso ir para um tema, por exemplo, de representação de corpos de mulher, posso ir para um tema de naves espaciais mas isso, para mim, é secundário. Porque no fundo, a essência da obra de arte, está nas tais leis, nas leis que eu chamo da morfometria, que são imutáveis.
É muito frequente retirar quadros da parece para retocá-los?
Sim, sim, acontece.
E quando é que um quadro seu está acabado?
Um quadro meu só está acabado quando cessa de me oprimir. Quando sinto que nada dele me oprime, começo a pensar que ele deve estar acabado. Mas essa sensação é muito difícil, porque à medida que um indivíduo vai evoluindo vai encontrando novas fórmulas, novos problemas para resolver: Por isso digo: "Quando é que um quadro está resolvido? Um quadro está resolvido para sempre na hora da morte. Na hora da morte está acabado". Antes não garanto.
Pensa que é aqui que podemos encontrar uma explicação para a constância no seu trabalho?
Sim, sim, há uma constância. São as leis imutáveis. As tais leis imutáveis, essas são constantes. Nós podemos evoluir; mas as leis que estão na geometria, na matemática, no círculo, no quadrado, essas leis são imutáveis. Quando um indivíduo pressente essas leis, quando as sente, depois toda a vida as procura. Pode mudar de tema, o tema pode evoluir, pode ser diferente, posso preferir representar as paisagens, as casas, as árvores, do que representar rostos de pessoas, mas no fundo isso é secundário. Porque a especificidade da obra de arte, aquilo que a caracteriza, são as tais leis que estão na geometria.
O Nadir não esteve sempre na proposta geométrica. Passou, dir-se-ia que quase inevitavelmente, pela fase surrealista.
Sim, tudo isso passou.
O surrealismo parece ter sido incontornável para a sua geração…
Lá está, enquanto não tive a consciência absoluta que a essência da obra de arte está na geometria, na tal morfometria, andei tacteando, procurei muitas coisas. Aí é que está o drama do criador, a meu ver. Todos estes impulsos são intuitivos, isto não é racionalizado. Um artista não racionaliza, no fundo, ele tacteia, E neste tacteamento, nesta tacteação, eu procurei muitas coisas, andei pelo surrealismo, andei pelo abstraccionismo, o abstraccionismo ainda hoje o cultivo, mas todas as tentativas eram uma procura porque o indivíduo não sabe.
A circunferência perfeita que desenhou aos quatro anos na parede da sala parece ter-lhe deixado lima impressão digital indelével no seu trabalho, como se marcasse para a vida...
Sim, é possível que nessa altura tivesse pressentido que é na harmonia das formas geométricas que reside a obra de arte, a essência.
Pode contar a história dessa circunferência?
Bem, deu-me para pegar num pincel, já não me lembra, mas acho que era um pincel, mas sei que era em vermelho e pintei um círculo em vermelho. Achei naturalmente interessante e pintei. Depois veio a minha mãe:
- Ai, sujaste a parede!.
Chamavam-me Riri...
- Pintaste a parede, Riri?
Acho que respondi - contava depois a minha mãe:
- Então eu era capaz de pintar uma roda tão bem feitinha?
E já não me repreenderam; porque eu subtilizei as coisas. Escapei à punição com aquela resposta. Isto ficou na história da família.
E o que fizeram esse desenho?
Já não me lembro. Mas a minha mãe e o meu pai não eram pessoas que se exaltassem por eu fazer uma coisa dessas, certamente. Apagaram aquilo e pronto.
Dá alguma explicação especial?
Bem, tinha talvez uns quatro anos e era realmente sensível e senti... o facto de num círculo haver um ponto central equidistante dos pontos periféricos é uma lei realmente extraordinária, ressoa no espírito segundo a forte sensação de plenitude, há uma exactidão no círculo e eu, talvez, já com os meus quatro anos tenha pressentido essa harmonia no círculo e a tenha já expresso. Mas tudo isso foi de uma maneira intuitiva. De uma maneira intuitiva o artista emprega leis. E muitos artistas ainda hoje dizem: "ah, eu com a geometria não quero nada. Eu emprego a minha alma, o meu interior". Isso é um engano. Pensam que não empregam a geometria, mas fazem-no de uma maneira intuitiva.
Até que ponto a atitude contemporizadora, a cumplicidade até dos seus pais em relação à roda vermelha na parede da sala, foi determinante naquilo que é hoje o Nadir Afonso?
Acho que foi realmente a atitude dos meus pais que me impulsionou a seguir as Belas-Artes. Se eles me têm contrariado, certamente não teria seguido. Os meus pais sentiram que eu tinha uma certa tendência para este caminho e aceitaram a minha evolução, nunca me contrariaram. E a tal ponto que eu, quando cheguei às Belas-Artes no Porto, levava um requerimento para o director para me inscrever em pintura. Mas ao entrar nas Belas Artes, naquele hall interior, antes das escadinhas, havia um contínuo que ali estava, pachorrento, e eu cheguei ao pé dele e perguntei:
- Onde é aqui a secretaria? Queria fazer a minha inscrição em pintura.
Ele pegou no requerimento e leu:
- Então o senhor tem o curso dos liceus e vai inscrever-se em pintura?! Oh homem, pintura não dá nada! A pintura não alimenta seu homem! Inscreva-se em arquitectura!
E eu, um pouco cobardemente, rasguei o requerimento e fiz outro: "Eu, ... venho respeitosamente requerera vossa excelência se digne inscrever-me em arquitectura. E lá fui para arquitecto um bocado contrariado. Mas eu nunca fui arquitecto. Fui sempre um pintor! E pintei sempre! A minha paixão foi a pintura. Mas fui levado por esse contínuo das Belas-artes que me pressionou, que me mostrou a agrura da vida!
Alguma qualidade teve depois como arquitecto para trabalhar com Le Corbusier é com Óscar Niemeyer.
Sim, mas era mais a necessidade de viver.
O problema económico é importante na vida das pessoas. E quando fui para Paris tive que trabalhar na arquitectura.
E como se deu o caso de ir trabalhar com Le Corbusier?
Eu, praticamente, quando saí de Portugal, o único arquitecto que conhecia era o Le Corbusier. De maneira que lá fui bater à porta desse homem! Já que estamos aqui... E assim foi. Não conhecia mais ninguém! Tive sorte nesse aspecto. No atelier de Le Corbusier estava tudo no princípio. Isto foi depois da [Segunda Grande] guerra, eu ainda atravessei a pé a fronteira entre Espanha e França, depois da guerra não havia ligação de comboios e eu atravessei a pé com a mala e o rolo das minhas telas, por ali fora, aquela linha-férrea a pé. Depois, em Paris, encontrei realmente uma certa protecção de Le Corbusier. A vida é isso, joguei um bocado forte, podia ter ido bater à porta de outro arquitecto qualquer, mas fui bater à porta do Le Cobusier e tive sorte.
Quantos anos esteve com ele?
Comecei em 1946, estive até 1948. Depois vim defender a tese a Portugal, voltei para Paris, e estive mais ou menos até 1951 com o Le Corbusier. Depois fui para o Rio de Janeiro, estive lá três anos e voltei, depois andei assim um bocado perdido...
E como se deu o caso de trabalhar com o Óscar Niemeyer?
Isso também tem uma história. Eu estava a trabalhar no atelier do Le Corbusier, nessa altura ainda nem havia telefone no atelier, isto em 1947 ou 1948, e vem a secretária dizer-me que estava à porta alguém para falar comigo. Era um indivíduo com uma carta de apresentação. Abri-a e era do meu pai:
- Olha, vai aí um filho de um conterrâneo nosso ...
Um tal Manuel Machado, os pais era de Chaves, amigos do meu pai, foram para o Brasil e lá tiveram aquele rapaz, que era arquitecto. Ele tinha vindo com os pais a Portugal, para ver onde os pais tinham nascido, foram falar com o meu pai, que lhes disse que tinha também um filho arquitecto, a trabalhar em Paris com o Corbusier. Claro que ele pediu logo ao meu pai uma carta de apresentação para vir ter comigo. E veio. Era uma pessoa cheia de vontade de fazer coisas, alugou lá um carro, andámos os dois de carro, quis andar nas "boites" e naquelas coisas todas, começou a beber, era muito mimado, até que me convidou:
- Venha comigo para o Brasil! Eu, com as minhas possibilidades, e o senhor, com o seu cartaz, com o seu curriculum de arquitecto colaborador de Le Corbusier, nós fazemos e acontecemos.
Propôs-me um futuro risonho no Brasil, ele com as suas possibilidades, vivia em Niterói, e já não dizia Niteroi, dizia "Niterruá", à francesa, e assim mais uns disparates, e eu ouvia aquilo tudo, até que ele lá foi para o Brasil e deixou-me o contacto. Passado um mês ou isso, comecei a pensar naquele tipo, no Manuel Machado ...
- Vou para o Brasil!
A apareci-lhe lá! Mas, afinal, aquilo que ele dizia era tudo fogo de vista, ele não tinha atelier nem nada, mas trabalhava com o Niemeyer. De maneira que o que ele me arranjou foi entrar para o atelier do Niemeyer. E lá trabalhei durante anos com o Óscar Niemeyer, também por acaso.
E como foi, trabalhar com Niemeyer?
Bem, o Niemeyer soube que eu tinha trabalhado com o Le Corbusier, isso deu-me cartaz. Era uma pessoa simpática e assim fomos convivendo. Mas em dada altura, ele deu-me um trabalho a fazer, já assim um pouco independente.
Também porque não se sentia absolutamente feIiz com a arquitectura?
Nunca, nunca ...
Então regressemos à pintura. o Nadir estudou durante anos o trabalho de Vincent Van Gogh, é um pintor que tem uma forte influência no seu período inicial, o que é que o levou a corrigir, literalmente, vários dos seus trabalhos e a publicar um livro com essa ousadia?
Acho que, justamente, a obra de Van Gogh veio reforçar a minha convicção de que a obra de arte obedece a leis matemáticas. Olhar para a obra de Van Gogh e retocá-la, alterá-la, essa intenção foi provocada por aquela minha convicção. Observando, com todo o cuidado que tive, a obra de Van Gogh, senti que tinha defeitos. Ele era um grande artista, mas estava sujeito a pressões para que fizesse obras rápidas, para vender depressa, foi pressionado por diversas vezes para fazer trabalhos que ele próprio não sentia. Ele tinha que despachar quase que uma obra por dia para Paris, para o irmão as vender. Ele já não acabava as obras. Mas a pintura tem que ser namorada, olhada de um lado e de outro, temos que, a pouco e pouco, apanhar o mecanismo da criação, as formas, como se integram e interpenetram e ele não podia fazer isso, era impulsivo. Também eu tinha passado por tudo isso e percebi: "Este homem falha!" E como sabia, por ter estudado a sua vida, que ele tinha aquela necessidade de despachar; comecei a retocar as obras dele. Isto parece impossível, mas eu comecei a ver; comecei a sentir, comecei a meter-me na pele do homem e então comecei a retocar as obras dele.
Quem influenciou quem? Conheceu Victor Vasarely em Paris quando tinha pouco mais de vinte anos, ele era 12 anos mais velho, são evidentes as influências que teve em si, mas há também quem sustente que Vasarely bebeu alguma coisa no trabalho do jovem Nadir Afonso.
Há sempre influências. É possível.
Chegaram a expor em conjunto…
Sim, na Galerie Denise René ....
O que é que Nadir Afonso deve a Victor Vasarely?
A amizade. Tenho a impressão que só o trabalho faz o artista. Acredito nas influências, muito bem, mas o difícil é compor! Eu posso ver um trabalho, mas se manipulei as formas, que resultado posso obter? Posso adoptar um tema, um tipo faz foguetes, viagens em naves espaciais, posso realmente interessar-me por isso, mas a verdade é que o trabalho pessoal é tudo. Eu olho para o trabalho do Vasarely e ... Depois há outra coisa, só quando um indivíduo se liberta das influências é que se toma num grande artista. E nós vemos, quando um pintor começa a imitar outro, até pode ter uma boa composição, mas vem logo o: "Isso lembra o pintor A ou B". O grande cuidado que tem um criador é fugir das semelhanças, das influências. Todos têm esse cuidado. E eu tentei sempre fugir disso.
Há um longo período de criação em Nadir decomposição urbana. Sofia Marques de Aguiar, uma jovem arquitecta do Porto, que iniciou uma tese de doutoramento com base no seu trabalho, sublinha a organização espacial muito rigorosa, quase obstinada, e sugeriu que lhe perguntasse de que forma Le Corbusier influenciou o seu trabalho?
Um dia, tinha feito uma série de quadros, e mostrei ao chefe do atelier; o Bogdanski. Ele viu aquilo e disse-me que devia mostrar tudo ao Le Corbusier. E eu caí na patetice de ir mostrar ao Corbusier as minhas pinturazinhas. Estava lá há pouco tempo e tal, e fui mostrar aquelas coisas. Acho que o Bogdansk:i fez aquilo na sacanice. Lá peguei nos meus desenhinhos, estávamos todos no atelier, que era muito grande e onde o Corbusier tinha um cantinho fechado, sem luz, miserável, onde trabalhava. Lá vou, bati à porta:
-Quem é?
- É o Afonso...
- Entra! O que é que queres?
- vinha aqui mostrar as minhas obras...
- Mostra lá! Isto é teu?! Agora não tenho tempo!!
Eu peguei em tudo e ele:
- Mostra cá, mostra cá! Não, não, agora não tenho tempo!
Parecia maluco, andámos ali, ele tão depressa queria ver como não queria, eu muito atrapalhado, a abrir e a fechar a pasta e, a certa altura, caio na camelice de dizer:
- Bem, eu inspirei-me na sua obra... Digo isto e ele exalta-se:
- Isto é teu, não é meu! Onde é que está aqui a minha obra!!!
Foi uma burrice. E de facto, eu nunca me inspirei na obra dele, ele até nem nunca foi bom pintor. Foi um bom arquitecto; fazia assim umas coisas nas horas vagas, umas mulheres e tal, mas nada que me entusiasmasse.
Mas na altura, o que mostrou a te Corbusier também não seria o que faz hoje, talvez fosse mais próximo do que estava a fazer com Vasarely.
Ora bem ...
Mas por isso retomo a pergunta, até que ponto esse estágio com Le Corbusier influenciou o que faz hoje, ou melhor o que faz desde esse período de composição urbana rigorosa que vemos na sua série "Cidades", por exemplo, e que ainda hoje está presente no seu trabalho?
Eu não digo que não tenha sido influenciado, mas se quiser mostrar a mim próprio em que raio fui influenciado... tudo isto é impulsivo, tacteado. Realmente, há a vontade de saber como aparecem as coisas, mas isso é uma coisa que ninguém sabe. Qual foi a osmose que atravessou a caixa dos pirolitos e quais foram as influências? É natural se que seja influenciado, mas como, é difícil que consigamos definir. Se não tivesse ido para Paris talvez hoje fizesse outros quadros, tenho pensado nisso muitas vezes, talvez seja óbvio, mas nunca saberei descobrir como se formou o emaranhado de caminhos e descobertas.
Como é que nomeia as suas obras? Como é que chega ao nome de um quadro? Cada quadro tem um nome?
Há pessoas que pensam que estas coisas não se devem dizer mas eu digo-as, porque é a pura verdade. Muitas vezes faço o quadro e só depois começo a pensar no nome que lhe hei-de dar. Aparece o nome muito depois do quadro estar feito. Muitas pessoas não compreendem este fenómeno. Pensam que um artista tem uma ideia e depois anda atrás dessa ideia, esquecem que um quadro vai nascendo à medida que as formas chamam outras formas. Eu sou conduzido. A partir de certa altura já não conduzo, é a própria composição que me vai esclarecendo. E no fim, se vejo que a composição agrada, que o quadro está bem composto, também eu fico admirado. "Olha, isto está muito bem! Como é que cheguei a isto? Não havia nenhuma ideia inicial, nenhuma! E agora, que nome vou dar a este quadro? É agora o quadro que me vai dizer que nome lhe devo chamar!"
O Nadir vem da circunferência, da roda perfeita desenhada na sala da casa onde nasceu, procura uma forma, uma composição perfeita? Qual é o seu Graal?
O círculo é o absoluto da obra de arte. No círculo reside a essência da obra de arte, é a forma absoluta. Um ponto central equidistante de um número infinito de pontos, caramba, é do arco-da-velha! Depois, claro, o artista não pode representar apenas círculos e quadrados, tem que, a partir destas leis, procurar novas leis.
O seu Graal é então o círculo? O ovo da criação?
É o ovo da criação, não há dúvida. Ali não há nada a retirar nem a pôr.
Há alguma obra sua em que sinta que esteve mais perto desse absoluto?
Essa é outra pergunta do arco-da-velha! Sempre que acabo uma obra sinto que aquela é a minha melhor obra, mas depois, logo regresso e acho que não é bem aquilo. Mas tenho obras que acho que são realmente fora de série, que acho que são irretocáveis, em que já não há nada a pôr nem a tirar. Mas às vezes, lá vem um "talvez"...
Nesses quadros, sente que esteve perto do círculo?
Sim, mas aqui a lei é diferente. Já não é a do ponto equidistante de um número infinito de pontos. É a do jogo das tensões matemáticas, extremamente complexas. É isso que tenho tentado explicar nos meus livros, as características da criação, mas certezas absolutas não as tenho, assumo princípios. Os gregos consideravam que todas as obras de arte estavam "matrizadas" pela divina proporção. Mas logo se impuseram outros princípios e leis. E é por isso que esta busca é eterna.
Está a escrever?
Estou, estou...
O quê?
Uma crítica a Einstein...
Uma crítica a Einstein?! E como lhe veio a inspiração de criticar o Einstein? Vai corrigi-lo, como fez com Van Gogh?
Comecei a pensar nestas coisas... Uma pessoa começa a trabalhar, começa a pressentir que há erros em algumas coisas, pode ser que se engane também, mas há um pressentimento, através do trabalho, de que alguma coisa está errada. Quando Einstein fala da dilatação do tempo, sinto que há alguma coisa que não está bem, porque o tempo é uma relação abstracta. Se é abstracta não é coisa concreta que possa dilatar ou diminuir. O que é a dilatação? É a distensão do corpo, portanto tem que haver corpo. Por isso a dilatação do tempo soa-me a qualquer coisa falsa. Tentei depois compreender essa falsidade na dilatação do tempo e comecei a sentir que o tempo, aquilo a que chamamos tempo, no fundo, é a duração, que existe, mas é igualmente abstracta.
Em que é que Einstein tem que ser corrigido?
É que ele diz que o tempo dilata e o tempo não pode dilatar porque o tempo não existe.
O tempo não existe.
Não existe. O tempo é uma relação abstracta. Existe como relação entre o espaço e o movimento.
O que existe então?
O que existe é a duração, a extensão e as leis, que são imutáveis. Como dizia em relação ao círculo, ele é uma lei imutável. Nada a pode destruir; não se pode criar como não se pode destruir, existe no universo, ainda que o homem não a conheça. É imanente.
Não têm portanto origem.
Justamente, não têm origem. A origem, o crescimento das coisas, a reunião de partículas na composição da matéria vêm depois da energia, a que eu chamo, legítica, porque é dada pelas leis. As leis geram energia. O começo, que não é começo nenhum, a existência está nas energias, que são geradas pelas leis. Nada começa e nada acaba, o que existe sempre existiu, é no universo que tudo se desenvolve. Há no cosmos três factores imutáveis: duração, extensão e leis, e estas depois geram num círculo contínuo energias, e estas, por sua vez geram partículas, a matéria, o movimento, do movimento dos corpos e o espaço percorrido nasce o tempo, mas tudo já são acontecimentos que são gerados pelas energias.
O que é que quer provar?
Que todo o nosso conceito de tempo está errado. Nós temos uma concepção do tempo dada pela rotação do nosso planeta, que nos levou a pensar que o tempo existia desde o princípio do universo. Mas não, foi o espaço e o movimento que geraram o tempo, mas nós pensamos que o tempo sempre existiu. É um mundo do diabo!