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Fundação Nadir Afonso

NADIR AFONSO - laurafonso@sapo.pt

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22
Ago10

Entrevista a Nadir Afonso

Laura Afonso
Entrevista a Nadir Afonso

por João CÉU E SILVA (texto), GUSTAVO BOM (foto)

"Você, portuguesinho, filho de barrosões, está a explicar desse modo o que grandes filósofos pensam diferente!..."

"Você, portuguesinho, filho de barrosões, está a explicar desse modo o que grandes filósofos pensam diferente!..."

Memória.  É fácil conversar com o pintor e perder o norte à entrevista porque Nadir Afonso tem muitas histórias para contar. Entusiasma-se facilmente quando as perguntas o fazem recordar situações da vida e desvia a atenção do guião. Vendeu o primeiro quadro aos 18 anos  e desde então não mais parou de pintar, mesmo que para tal tivesse abandonado o curso de Arquitectura que um contínuo das Belas Artes do Porto o convenceu a fazer em vez do de Pintura.

Há quem interprete a personalidade de uma pessoa lendo a palma das mãos. Acha que consegue ser lido através da sua pintura?

Não acredito nisso e penso que não é possível. A meu ver, a obra de arte tem leis próprias e imanentes à matemática, e o temperamento do artista não é mais do que apreender essas leis que estão na natureza. O papel do artista é ser mais ou menos sensível a essas leis, e quando vêm com essa conversa "eu exprimo na obra de arte o meu mundo interior e a linguagem da alma", isso não rima com coisa nenhuma.

Há pintores a quem isso possa acontecer?

Só se quiserem acreditar nisso! Mas o verdadeiro artista emprega as matemáticas através de faculdades inconscientes. Entra com o factor matemático mesmo que o próprio não se aperceba, e isso é que é interessante. Quando se fala com um artista genial e se pergunta "olha lá, tu empregas matemática?", a resposta é sempre: "Não, não emprego matemática. Eu emprego o espírito, algo tornado sensível." É que o próprio artista não se apercebe de que emprega as matemáticas, e isso é que é interessante, porque, sendo apreendida de uma maneira intuitiva, escapa ao próprio artista.

É dos poucos pintores que, ao longo da sua vida, fez questão de teorizar a arte?

Eu faço questão de teorizar e até escrevi um livro com uma síntese sobre o que penso da arte.

Síntese que prova que o artista não consegue fugir a essas leis da matemática?

Não consegue fugir porque as leis existem, mesmo que não eleve ao nível do raciocínio os seus impulsos intuitivos. Geralmente, define-se que o artista é intuitivo e que trabalha sem nunca se dar ao cuidado de racionalizar esses impulsos intuitivos.

Não será o seu caso?

Toda a minha vida me perguntei porque faço assim e não faço assado. Sou um pouco diferente - suponho - dos artistas que foram puramente inconscientes naquilo que fizeram.

Como aconteceu com o pintor Van Gogh?

O Van Gogh nunca compreendeu muito bem o mecanismo da criação. Nem ele nem a maior parte dos pintores, porque não se apercebem das leis e jogam com elas de uma maneira intuitiva.

Com Picasso também?

Com o Picasso também.

Mas nem ele se apercebeu?

Não se apercebeu. Peço desculpa por ser um bocado radical, mas eu devo ser dos raros indivíduos que teve o cuidado de elevar ao nível do raciocínio os seus impulsos intuitivos. E mais. Tenho lido muito crítico de arte e muito esteta, e eles nunca falam da essência de uma obra de arte: a matemática. Não falam nisso mas sim da perfeição do objecto, da originalidade ou da evocação... Sobre o que é específico numa obra de arte, que é a matemática, é que eles nunca falam.

E nunca se sentiu um pouco isolado no mundo da arte?

Sinto-me absolutamente isolado, e é uma coisa estranha ser eu o único a pensar assim, no que vi e li até agora - com quase 90 anos -, e não encontrar um único esteta que concorde comigo.

No tempo de Van Gogh, era normal não se teorizar muito a própria pintura. Mas sobre Picasso há muita investigação. O que se passa?

O que os estudiosos fazem é relacionar a arte com a Sociologia ou com a Psicologia, mas quanto à essência, peço desculpa mas sou o único homem - mesmo que possa parecer egocentrismo - que se ocupou dela.

Estudou matemática?

Nunca estudei Matemática porque a matemática do artista não é racionalizada. Isso é fácil de perceber. Se perguntarmos a um homem inteligente onde está o ponto C, equidistante num segmento de recta que vai de A a B, ele pode fazer um tratado de 200 páginas a explicar a situação. Mas se eu lhe disser "mostre onde é que está o ponto C", dificilmente me o indicará. Se fizer a pergunta a um analfabeto, ele aponta-o logo. Isto é para dizer que com a obra de arte acontece exactamente o mes- mo. Só há uma relação entre as distâncias A a C e C a B, ao passo que a obra de arte tem relações não mensuráveis.

A sua relação com os críticos de arte deve ser complicada...

É o diabo, é! Geralmente, o crítico actual assume a sua posição - acredita na magia, no sobrenatural e nas qualidades da natureza -, mas pelo facto de eu ter uma concepção diferente, é, por vezes, injusto comigo. Eu digo "não é nada disso" sem ter intenção de os ofender pessoalmente, mas como estou em contradição com eles, atacam-me.

E o cidadão normal entende as suas teses?

Há muitas pessoas com quem falo directamente que dizem "realmente tem razão, percebe-se perfeitamente". Mas, de uma maneira geral, quem não convive comigo acredita mais nos estetas, e o que é normal é darem-lhes razão. "Então você, portuguesinho, natural de Chaves, transmontano, filho de barrosões, está a querer explicar uma coisa que os grandes filósofos alemães pensam de um modo diferente!..."

Nem mesmo Marx tem outra visão crítica da arte?

É a mesma coisa. O Marx compreendeu que há qualquer coi- sa de perpétuo e de imutável na obra de arte mas fê-lo de uma maneira negativa. E há! São as raízes matemáticas - o quadrado do Pitágoras de há milhares de anos é o mesmo hoje -, porque as leis imanentes à obra de arte são eternas e constantes. Marx dizia: "Não percebo como é que uma obra de arte pintada há 200 ou 300 anos ainda hoje nos procura satisfações estéticas." Marx apercebeu-se de que há qualquer coisa que não entende, só não soube compreender que a matemática é eterna. Mas, por outro lado, Marx compreendeu que havia qualquer coisa que escapava aos filósofos.

Leu o estudo de Álvaro Cunhal A Arte, o Artista e a Sociedade , em que ele teoriza sobre este tema?

Não li, mas posso acrescentar que para ele os bons pintores eram os do seu partido. O que não é lá muito correcto, mesmo que tenha sido um bom político. O erro do político é estar a juntar a arte e a política; nestes casos não há mistura. Se bem que em Portugal seja muito corrente ver-se o político ser um bom artista quando é da mesma cor... Eu sou contra esta situação desde sempre.

Atravessou quase todo o século xx. Como conseguiu manter-se fora da influência da política?

Também fui político - até era mais das esquerdas do que das direitas -, mas não misturei as coisas.

Teve actividade política nestes quase 90 anos de vida?

Eu nunca tive uma actividade política. No entanto, parecia-me que havia coisas no comunismo que estavam correctas. Agora não acredito tanto nisso porque li mais algumas coisas, tal como os livros do filósofo Karl Popper, que me mostraram muitas erros nessa ideologia. No entanto, enquanto estava em Paris, fui muito interessado pelas esquerdas.

E em Portugal? Qual foi o seu posicionamento político?

Fui acompanhando as várias realidades, mas hoje sinto que já não sou político.

A política não faz lei dentro da sua arte?

Não faz, nunca fez. Nunca acreditei que a política pudesse interferir na obra de arte ou que a arte se intrometesse na política. Se bem que sinto isso em muitos políticos e artistas em Portugal, onde há muita confusão.

Ao pintar, nunca sente uma componente política?

Nunca, nunca!

Como nasce a obra?

Ora aí está uma pergunta correcta! Eu tenho-a feito a mim próprio muitas vezes porque insisto que a criação é-nos dada por faculdades inconscientes: a intuição. Quando um indivíduo começa a pintar, ele próprio pode racionalizar "vou pintar mulheres". Mas quando lança o primeiro traço, é este que vai chamar os outros. Depois, começa um jogo de factores puramente matemáticos, e a evolução da obra já nada tem a ver com o tema, porque as formas nascem de uma relação matemática.

Nunca se sente obrigado a contrariar a sua intuição?

Não. O político pode pensar "eu vou pintar uns pobrezinhos", mas se é artista não poderá fugir às leis. Se não é hipersensível, empenha-se na perfeição e fica pela perfeição de um rosto que, evidentemente, cria emoção mas não a originalidade.

E é um artista menor por causa disso?

É menor se não justapõe as formas que emprega dentro de leis matemáticas. O verdadeiro artista terá a mesma vontade de pintar casas ou figuras, mas dá-lhe uma estrutura matemática. O truque do verdadeiro artista é justapor as formas dentro de leis matemáticas não tendo consciência disto.

Também teorizou sobre as leis do universo e critica Stephen Hawking e Einstein...

Isso já é outra coisa... É que eu penso que o factor tempo não existe...

Nem existe o passado, o presente ou o futuro?

Não existem. Mas isto é uma situação extremamente subtil e difícil de apreender. No entanto, eu tenho essa sensação.

Como é que enquadra a sua ausência de tempo numa vida com quase décadas?

O que há é o espaço e a velocidade. Se chamarmos ao tempo a relação entre espaço e velocidade e ficarmos por aí, então está muito bem. O que evolui é a velocidade. Porque os corpos evoluem dentro de relações com o espaço. Mas vamos supor que o corpo que evolui no espaço pára! Aí a relação é nula, e os que acreditam no tempo vão dizer "o tempo continua", enquanto eu direi "não, o tempo não continua", porque para um corpo imóvel não existe o tempo. Claro que tenho este meu pensamento bem arquitectado, mas em palavras mais concisas pode-se dizer que é isto.

A sua relação com a pintura já passou por várias fases. A que se devem tais períodos?

Mais uma vez digo que é intuitivo e natural. A primeira reacção é racional: vou pintar figuras estranhas que nunca vi, por exemplo. Depois, a elaboração da obra passa a ser condicionada pela justaposição matemática das formas. Sei muito bem que posso fazer surrealismo ou pintura barroca por decisão mental. Eu comecei o barroco quando cheguei ao Porto, e fiquei muito impressionado com o barroquismo existente na Igreja dos Grilos. Tentei aproximar-me daquele barroquismo por uma decisão puramente racional, mas ao trabalhar as formas o homem é trabalhado por elas e sensível às leis. Por conseguinte, o tema desaparece e só ficam as leis a orientar o homem.

Foi através do pintor brasileiro Cândido Portinari que obteve a bolsa para ir para Paris. A volumetria da sua pintura impressionou-o muito?

Sim, ele é um bom pintor, mesmo sem haver qualquer composição nos seus quadros .

Vai para Paris ainda com estatuto de arquitecto. Porque desiste dessa profissão?

Vou como arquitecto, mas o que me atraiu a Paris foi mais a vontade de ver ao vivo as pinturas dos grandes mestres e, ao chegar lá, as obras de outros artistas que desconhecia, como foi o caso do Vasarely. Mas lá está, sempre com a mesma convicção de que, quer seja o surrealismo, o abstraccionismo ou o tema barroco, todos obedecem às mesmas leis. Ao pintor de vanguarda acontece-lhe a mesma coisa que ao pintor dos séculos xvi ou xvii.

Seja os pintores tão diferentes como o são Vasarely ou Van Gogh?

Convivi com o Vasarely e tenho um exemplo curioso sobre este meu pensamento. Estava lá na minha águas-furtadas a pintar e decidi mostrar ao Vasarely, que era já meu amigo, a minha pintura. Ele vira alguns trabalhos meus e quis ver mais. Quando ele disse que vinha à minha casa eu estava a pintar um quadro e não havia meio de ajustar as formas. Se bem que eu não as compreendesse racionalmente, estava a sentir as leis e tinha a sensação de que havia um canto do quadro onde as formas reagiam mal e não se acordavam. Eu andava naquilo há uma série de tempo, e quando ele tocou à campainha, a primeira reacção que tive foi não lhe mostrar esse quadro que me fugia à compreensão. Virei-o do avesso e encostei-o à parede para passar despercebido. Vasarely entrou, estivemos a ver várias pinturas e depois ficámos à conversa. E ele veio com a história de que a arte é subjectiva e justificava-o assim: "o que te agrada a ti não me agrada a mim". E eu pensei: "se é assim e se aquele quadro que deixei contra a parede está errado, quando ele vem com esta conversa de que a arte é subjectiva só me resta mostrar-lhe". Agarrei nele e exibi-o. E ele, com aquela experiência de longos anos, viu o quadro, sorriu e disse: "aqui neste canto ainda não encontraste a forma". Então, disse--lhe logo "eu tenho razão: por isso é que a pintura não é subjectiva, e a prova disso é que eu sinto que este quadro está errado".

Como é que desempataram as opiniões?

Eu propus-lhe fazer uma coisa. Dei-lhe o estudo que sempre costumo fazer - que geralmente é exactamente igual ao futuro quadro - e desafiei-o a procurar o que faltava naquele canto do quadro. E ele levou--o consigo para tentar encontrar a forma exacta da pintura. Logo no dia seguinte, encontrei-o e ele exclamou "o quadro está difícil". Andámos naquilo uns tempos, até que um dia ele me disse: "Encontrei a forma que se ajusta à composição!" E eu, que ainda não tinha encontrado o que lhe fazia falta, fiquei um pouco humilhado. Redobrei os meus esforços e tanta volta dei que a dada altura encontrei a composição que eu considerava justa. Para espanto dele, tínhamos chegado à mesma conclusão sobre o que faltava. Nesse momento, eu disse-lhe: "isto é a prova de que tem leis e não é subjectivo". Mais tarde, no Brasil, eu contei isto ao Óscar Niemeyer, e quando lhe disse que chegáramos à mesma conclusão, o Niemeyer, que é uma óptima pessoa mas meio disparatado, disse imediatamente: "Isso é bobagem!"

Mais uma vez sozinho.

O que fiz quando ele respondeu "Isso é bobagem!" foi dizer-lhe: "então vamos fazer uma coisa: estamos no Rio de Janeiro e não sei o que estão a fazer em Paris, mas como recebem cá a revista Artes Hoje, mutilem um quadro que venha na revista que eu refaço igual". Pus uma condição: "Que seja um quadro de Herbin, Vasarely ou Mortensen, que são quadros de uma matemática irrepreensível." O desafio era: "alteram o quadro e eu dir-vos-ei onde é que está o retoque ou a mutilação". Foi uma jogada forte a minha, e eles assim fizeram. Em vez de um quadrado puseram um círculo em determinado sítio da tela e, com muito cuidado, retocaram o quadro e puseram-no a três metros de distância. Olhei e tive sorte, pois podia não ter apanhado a emenda: "Está ali o retoque." O Niemeyer e os outros ficaram com uma cachola!

Era difícil lidar com arquitectos como Niemeyer ou Le Corbusier?

Era muito difícil. Eles eram óptimas pessoas, mas quando se tratava de arte... Le Corbusier, quando sentia que não conhecíamos a sua obra, ficava fulo; queria que conhecêssemos a obra melhor do que ele próprio: "Então tu não sabes qual é a solução que está na obra tal..."

Trabalhou no atelier de Le Corbusier?

Trabalhei muito tempo, sim.

Dizem que ele até lhe deu as manhãs para poder pintar. É verdade?

Foi, sim. Mas passei maus bocados com ele, porque era orgulhoso e egocêntrico como artista. Ele é que era o verdadeiro artista! Lembro-me que um dia apareci no atelier com seis quadros com guaches para mostrar à malta, e o chefe do atelier disse-me que Le Corbusier os deveria ver. Ele estava numa dependência muito pequenina, que não tinha luz eléctrica - era uma mania dele trabalhar num cubículo -, e eu enchi-me de coragem e fui bater à porta. "Dá licença, mestre?" E entrei. "O que é que queres?" Queria-lhe mostrar os meus trabalhos. "Estou ocupado, mas mostra lá." Depois dizia "agora não tenho tempo", mas logo de seguida "Mostra cá!" Entrou num jogo de tal modo bizarro que eu fiquei tão atrapalhado e lhe confessei "Inspirei-me nos seus trabalhos." E aí ele exaltou-se: "Isso é teu, não é meu!" A dado momento, eu já não sabia se havia de ir embora se devia ficar naquele cubículo.

A relação com os grandes artistas é sempre muito complicada...

Muito! Mas, à parte disso, era um bom homem. Lembro-me de um belo dia eu ter-lhe dito "vou a Portugal defender a tese" e de ele me ter levado ao andar onde vivia. Estávamos a conversar e vi que se encostou a um canteiro de flores, que ele próprio tratava, e que fez qualquer coisa. Eu não percebi o que era - nem porque estava com as mãos atrás das costas -, mas quando nos despedimos, entregou-me um girassol que tinha cortado do canteiro. E lá vim eu de de girassol pelas ruas de Paris...

 

Nadir Afonso

"Corrigi quadros de Van Gogh, o que é indesculpável para os críticos em Portugal"

 

Os jovens pintores vêm-lhe mostrar trabalhos?

Vêm, vêm.

E tem paciência?

Às vezes não tenho, principalmente se sinto que é mau... Lembro- -me de uma situação que me aconteceu e que me deixou extremamente irritado. Veio um rapazinho falar comigo e começámos a conversar. Eu disse-lhe que a pintura é uma coisa muito difícil porque bem via que ele não o conseguia. Mostrara-me um carvão em que pintava o que tinha visto numa revista; era uma cópia muito mal feita. Fiquei um pouco chocado com aquilo e até lhe disse "a mim tem-me acontecido às vezes não conseguir fazer as coisas por ter muita dificuldade em acordar as formas". E aí, ele olhou para mim e olhou para os meus quadros e diz: "Não me admira, até eu tenho dificuldade."

E irritou-se um pouco?

Irritei-me. Estava a tentar harmonizar a conversa para que ele não se sentisse triste, e ele responde-me aquilo! É verdade que tenho quadros sobre os quais até eu próprio digo "não consigo". Neste quadro que está aqui [aponta para um], aquela lua que é preta só foi feita há poucos dias.

Fez uma correcção do original?

Não estava lá a lua preta. Eu tanto olhei para o que estava antes na tela, que concluí que ali faltava qualquer coisa e pus aquela forma. Onde eu acuso Van Gogh é nisso! Era um grande artista mas vivia do subsídio do irmão galerista em Paris e, quase diariamente, fazia um embrulho que mandava para Paris com os quadros que pintava. E noto que muitas vezes não os acabou devido àquela necessidade de ganhar dinheiro, porque frequentemente os quadros eram defeituosos. Eu fiz isso, corrigi alguns dos seus quadros - tive a petulância e o arrojo -, o que é uma coisa indesculpável para estes críticos aqui em Portugal, que me atacaram porque eu fazia isso. Não vou dizer que acertei no que fiz, mas ele caía sempre nos mesmos erros nos seus quadros. Eu olhava-os e era fatal: "Há aqui um erro." Passado uma semana, voltava a olhar para os quadros e observava o mesmo erro: "Não há dúvida nenhuma de que existe aqui uma falta de compreensão e de percepção das leis da matemática." E, por isso, corrigi alguns dos quadros do Van Gogh.

Não sentiu falta da arquitectura e pena de abandonar o curso?

Sinto que nunca fui arquitecto. Eu fazia arquitectura para viver, mas a minha paixão sempre foi a pintura.

Desde sempre?

Sempre.

É curioso, porque aos 18 anos vendeu o seu primeiro quadro para um museu no Porto. Como aconteceu?

Um amigo meu, arquitecto, que era de Lisboa, convenceu-me a apresentar três quadros para uma exposição do SNI. Era uma colectiva com muitos pintores da época. Eu emprestei-lhe os quadros, ele trouxe-os para Lisboa e foram um sucesso. Até houve jornais que falaram nisso, porque um desses quadros foi muito elogiado - retratava a Ribeira no Porto - e foi adquirido por um museu.

Quando está a pintar gosta de silêncio ou ouve alguma música?

Silêncio.

Prefere pintar de manhã, à tarde ou à noite?

Eu pinto a qualquer hora, até de noite. Se me lembro de um quadro onde penso que errei - às vezes até vejo a imagem de outra maneira -, sou capaz de me levantar a meio da noite para ir retocar esse quadro.

Fica muito tempo a pintar?

Eu vou até ao esfalfamento. Lembro-me de estar na água- -furtada em Paris - geralmente tinha muitos quadros no quarto - e, ao levantar-me da cama, a primeira coisa que fazia era olhar para os quadros. Acontecia-me esta coisa terrível, que era olhar para um quadro e dizer "este está errado". E retocava-o. Se encontrasse a solução, acabava por me vestir e ia para o trabalho no atelier de arquitectura do Le Corbusier. Mas, vamos supor o drama de que eu não conseguia encontrar a solução, como aconteceu muitas vezes. Então, olhava para o quadro e dizia "Há um erro, tenho um quarto de hora para corrigir." Se não fosse capaz, já não ia para o trabalho.

Ficava a retocar o quadro até encontrar o erro?

Ficava ali. Passava-se a hora de comer, ao meio-dia, passava-se a hora de sair, às seis ou sete, passava-se a hora de jantar, e eu ainda à procura da solução. Quando saía para comer alguma coisa, por volta das 11.00 ou meia-noite, olhava para o espelho e estava verde e irreconhecível. E então perguntava-me "Mas como é que cais nesta estupidez?" Era um fascínio! Procurava e às vezes não encontrava! Ia para um restaurante, aí por volta das 23.00, e vivia um estado de surrealismo, pois sentia o tilintar dos copos, as pessoas eram anormais, e entrava numa espécie de ascese e num estado irreal de cansaço. Desde essa altura que me acontece isso. Quando chegava ao ponto de ter de sair do restaurante, os meus passos na rua faziam um barulho sobrenatural, e eu estava transformado.

Quando faz um balanço da sua vida, sente-se reconhecido em Portugal?

Acho que sim. Desde a primeira exposição que fiz com esses três quadros que fui muito reconhecido.

Acha que há grandes pintores em Portugal em número suficiente ou existem poucos?

Há poucos.

Porquê?

Porque é difícil ser- -se hipersensível e a natureza está muito bem feita. Um hipersensível sente as relações matemáticas mas, em compensação, é um infeliz porque se a hipersensibilidade é boa para resolver um quadro também é má para a vida em sociedade.

Acha que o Estado apoia suficientemente a arte em Portugal?

Não apoia nada. Mas não acuso ninguém.

Nem depois do 25 de Abril a situação mudou?

Não, não há apoio. Depois do 25 de Abril há apoio para os que são da cor política.

Actualmente não se preocupa com a situação política ou acompanha o que se passa?

Não me preocupo nada com o que se passa na política.

E vota?

Voto. Mas é pelo sujeito e não pelo partido. É pelo homem. Já votei, por exemplo, em Cavaco Silva, porque me pareceu um homem correcto. Mas também já votei noutros, que são contrários, porque me pareceram homens correctos. Já não vou pelo partido, vou pelo indivíduo.

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